Coluna: a hora e vez dos novos-generalistas; entenda este novo perfil profissional
Saiba como esse perfil responde aos desafios impostos pelo novo mundo que se instalou desde o início da pandemia
Há pouco mais de um ano, quando a pandemia do novo coronavírus começava, o termo “novo normal” passou a fazer parte do vocabulário global, como uma tentativa de racionalizar, explicar e resumir a mudança sem precedentes que se iniciava. Hoje, face a complexidade e com os desdobramentos desse momento crítico, mas também histórico, já não nos restam dúvidas de que a realidade vigente é sim totalmente nova, mas está longe de poder ser chamada de “normal”.
O fato é que, a realidade posta desenha um “novo mundo” se formando diante de nossos olhos.
Deixando de lado os desafios globais humanitários, ambientais, sanitários, e da manutenção das democracias e liberdades individuais, que sem dúvida serão onipresentes daqui para frente, e focando no microcosmo das dinâmicas sociais e do trabalho, as evidências desse “novo mundo” são claras:
- As interações virtuais tornam-se permanentemente predominantes e naturalmente integradas em nossa dinâmica de vida (independente de profissão, faixa etária ou localização geográfica);
- A vida em comunidade se reorganiza e o êxodo urbano é incentivado pela possibilidade de trabalho remoto e maior qualidade de vida fora das megalópoles;
- Os níveis de inteligência artificial avançam rapidamente – do nível básico de eficiência para personalização, raciocínio, até exploração no nível máximo de superinteligência (ASI);
- A escassez de contratos integrais cresce e a carga-horária da jornada de trabalho é revista, assim com as legislações trabalhistas em todo o mundo; e
- As formas de construção de conhecimento são múltiplas, individualizadas, híbridas, e envolvem menos a educação formal tradicional.
Conheça os novos-generalistas
Nesse contexto, que alguns enfrentarão como ameaça e outros abraçarão como oportunidade, há um tipo de perfil que, potencialmente, melhor se adaptará ao novo mundo: os novos-generalistas.
Eu ouvi essa expressão pela primeira vez e as ideias de Kenneth Mikkelsen em um evento, em Lisboa no início de 2018, tempo que sentimos como um passado muito distante em que nós sequer pensávamos em pandemia, mas onde a proposta dos novos-generalistas já fazia sentido.
Nesse evento, organizado com o propósito de ser uma plataforma de debate sobre “Como humanos se tornam mais humanos, e negócios se tornam mais bonitos” (ou seja, sustentáveis, inovadores, e preparados para o futuro), Mikkelsen apresentou as ideias do seu livro, The Neo-Generalist – ou O novo-generalista –, escrito em parceria com Richard Martin.
Os autores defendem um movimento batizado de Renascimento Radical, justamente inspirado no Renascimento Cultural dos séculos XIV, XV e XVI que marcou a ruptura definitiva com a Idade Média – sincronicidade no mínimo curiosa, uma vez que alguns retrocessos recentes, como o negacionismo científico, têm nos levado praticamente de volta à idade das trevas.
Para eles, o novo-generalista é um especialista-generalista que navega entre conhecimentos específicos e conhecimentos multidisciplinares em um looping infinito, mesclando tais conhecimentos de acordo com o contexto e/ou no exercício dos seus diferentes papéis sociais.
A proposta é de certa forma óbvia, mas contrapõe uma era de hiperespecialização, tanto do mercado de trabalho quanto da abordagem educacional, e se alinha às necessidades de mentalidade e postura que as transformações listadas acima exigirão.
Uma abordagem inclusiva
A essa altura, aqueles que conhecem a teoria do conhecimento em “T”, onde o topo da letra representa os conhecimentos generalistas (amplitude) e a haste vertical o domínio especialista (expertise), ou ainda aqueles que simpatizam com a abordagem filosófica de Isaiah Berlin, da parábola da raposa e do ouriço e os dois modos existenciais de enfrentar a realidade, devem estar se perguntando como essas ideias se fundem e quais são as suas similaridades.
É justamente ao apresentar a dinâmica do novo-generalismo em um “looping infinito”, que Mikkelsen e Martin nos provocam a exercê-lo de maneira orgânica e pulsante, que transita entre todas essas definições em questão de segundos.
Os autores explicam: “O novo-generalista é um termo inclusivo que incorpora todos os diferentes tipos que aparecem no continuum: os especialistas, os ouriços, as raposas, os homens e mulheres renascentistas, os multipotencialistas, os multi-hifenatos, os valetes de todas as profissões, os “Pi-shaped”, “comb-shaped”, “T-shaped” (mesmo que muitas vezes eles sejam mal categorizados, mal compreendidos) e os generalistas polimíticos”. (livre tradução de citação do livro).

Imagem do looping infinito descrito no livro The Neo-Generalist de Kenneth Mikkelsen e Richard Martin.
O livro apresenta inúmeras histórias ricas e diversas, de pessoas de todo o mundo, famosas e anônimas. Entre elas, uma das minhas favoritas (e que mais explica como o looping infinito se aplica na prática) é a história de Susy Paisley-Day.
Pesquisadora honorária da Universidade de Kent, Paisley-Day se tornou detetive profissional enquanto estudava ursos selvagens para sua pesquisa de PhD. Isso mesmo, você não leu errado… Susy se interessou pela área de investigações para compreender melhor a criação de padrões e pistas, e inclusive, utilizou parte dos novos conhecimentos em sua análise científica. Mas, ela também combinou isso com o mistério do desconhecido – a incerteza e a ambiguidade – de estar na selva e descobrir como rastrear ursos selvagens.
Em relação as figuras ilustres, impossível não citar o maior nova-generalista de seu tempo, Leonardo da Vinci. Artes, geometria, arquitetura, anatomia, e aerodinâmica eram apenas algumas das suas áreas de interesse, e sua biografia e legado são retratos do looping infinito em ação.
Ou seja, é nessa mistura continua de especialização e generalização que a mágica acontece!
Muito além dos rótulos
Me lembro que uma fala específica daquela palestra em Lisboa me tocou imediatamente: “Os novos-generalistas têm dificuldade em se encaixar em um rótulo específico que os defina – como analista financeiro, gerente de marketing, etc.”
Eu nunca consegui me encaixar em um rótulo apenas: relações públicas, empreendedora, professora, consultora, escritora. Por muito tempo, esse “desencaixe” foi uma preocupação para mim, pois sentia a pressão em limitar o foco, ao mesmo tempo que não conseguia abandonar todas as “partes de mim” que contribuem para o “todo”. Então, talvez por isso eu seja uma entusiasta desse conceito, mas também (e especialmente) por viver, na prática, os frutos dessa combinação de conexões (supostamente) aleatórias de um repertório novo-generalista.
Enfim, o que o livro deixa claro é que não existe uma única fórmula mágica para se tornar um novo-generalista. Cada um traçou a própria jornada. Alguns vêm de origens culturais diversas, outros viveram em vários países, fizeram vários estudos aparentemente não relacionados com suas áreas de especialidade ou tiveram uma relação conturbada com o sistema de educação formal.
Mas, independentemente das particularidades, todos os novos-generalistas retratados no livro compartilham um profundo sentimento de desejo de compreensão do mundo – de constante curiosidade, uma visão de explorador que não necessariamente busca a imediata aplicação ou tecnicidade de determinado conhecimento.
E aí, que tal se assumir (ou se tornar) um novo-generalista?
CLIQUE PARA MAIS ARTIGOS